Por causa da retração econômica provocada pela atual crise financeira, o número de famintos, segundo a FAO, saltou de 860 milhões para um bilhão e duzentos milhões. Tal fato perverso impõe um desafio ético e político. Como atender às necessidades vitais destes tantos milhões e milhões?
O flagelo da fome não constitui, propriamente, um problema técnico. Existem técnicas de produção de extraordinária eficácia. A produção de alimentos é superior ao crescimento da população mundial. Mas eles estão pessimamente distribuídos. Cerca de 20% da humanidade dispõem para seu desfrute de 80% dos meios de vida. E 80% da humanidade devem se contentar com apenas 20% deles. Aqui reside a injustiça.
Uma desumanidade básica se encontra na raiz do flagelo da fome. Se não vigorar uma ética da solidariedade, do cuidado de uns para com os outros, não haverá superação nenhuma.
Importa considerar que o desastre humano da fome é também de ordem política. A política tem a ver com a organização da sociedade, com o exercício do poder e com o bem comum. Já há séculos, no Ocidente, e hoje de forma globalizada, o poder político é refém do poder econômico, articulado na forma capitalista de produção. O ganho não é democratizado em benefício de todos mas privatizado por aqueles que detêm o ter, o poder e o saber; só secundariamente beneficia os demais. Portanto, o poder político não serve ao bem comum. Cria desigualdades que representam real injustiça social e hoje mundial. Em consequência disso, para milhões e milhões de pessoas, sobram apenas migalhas sem poderem atender a suas necessidades vitais. Ou, simplesmente, morrem em consequência das doenças da fome, em maior número, inocentes crianças.
Se não houver uma inversão de valores, se não se instaurar uma economia submetida à política, e uma política orientada pela ética e uma ética inspirada numa solidariedade básica, não haverá possibilidade de solução para a fome e subnutrição mundial. Gritos caninos de milhões de famintos sobem continuamente aos céus sem que respostas eficazes lhes venham de algum lugar e façam calar este clamor.
Sem estas medidas continua válida a crítica de Gandhi: ”A fome é um insulto; ela avilta, desumaniza e destrói o corpo e o espírito…se não a própria alma; é a forma de violência mais assassina que existe”.
* Leonardo Boff, teólogo e filósofo, é autor do livro 'Comer e beber juntos e viver em paz' (Vozes, 2006). -lboff@leonardoboff.com
Fonte: Jornal do Brasil