Lucimar Moreira Bueno(Lucia) - www.lucimarbueno.blogspot.com

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Martírio e missão a partir das CEBs


Por Dirceu Benincá

Com maior ou menor intensidade, ao longo da história do cristianismo sempre houve batismo de sangue por causa da fé. Em tempos mais recentes, na América Latina e Caribe, os mártires se multiplicaram. Isso evidencia, por um lado, o aprofundamento das injustiças e desigualdades sociais e, por outro, a resistência e a luta do povo na defesa dos diversos direitos, da vida e da dignidade humana. O mártir é alguém consciente da conjuntura sócio- histórica; da ordem que produz a desordem; das forças que geram a fraqueza.

É portador de um projeto coletivo. Pensa para além das contradições do presente; enxerga através da noite escura e ousa ajudar o dia a clarear. Doa-se aos poucos ou tudo de uma vez, ancorado em uma espiritualidade profético-libertadora.


CEBs: uma Igreja martirial

As Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) têm suas raízes no movimento desencadeado por Jesus de Nazaré. Surgidas no contexto do Concílio Vaticano II (1962-1965), ao longo de sua história foram vistas com suspeita, questionadas e até perseguidas. Alguns as rotularam de subversivas e comunistas. Porém, elas significam uma nova expressão eclesial; um espaço de evangelização, de vivência fraterna e tomada de consciência da realidade.

Em 1979, na Conferência de Puebla, os bispos disseram: “Está comprovado que as pequenas comunidades, sobretudo as Comunidades Eclesiais de Base criam maior inter-relacionamento pessoal, aceitação da Palavra de Deus, revisão de vida, reflexão sobre a realidade, à luz do Evangelho; nelas acentua-se o compromisso com a família, com o trabalho, o bairro e a comunidade local [...]. Constituem elas ambiente propício para o surgimento de novos serviços leigos...” (DP 629).

As CEBs procuram ser ecumênicas, abertas ao diálogo, inculturadas e inclusivas. Articulam fé-vida e religião-política; promovem a solidariedade e valorizam a diversidade, buscando a libertação integral das pessoas. São espaços de formação da consciência crítica, de construção de relações democráticas, ecológicas, étnicas, de gênero. São comunidades que não se acomodam diante da realidade, mas procuram transformá-la.

Desde o início da colonização, a América Latina vem sendo regada pelo sangue de muitos mártires. “Esse martírio de nossa América tem, já desde as origens da evangelização no continente, duas peculiaridades: é um martírio pelo “pobre” e pelo “outro”. Entre nós o conceito de martírio se alargou. Nossos mártires são mártires pelo Reino, não somente pela estrita confissão de um artigo de fé cristã. Nossos mártires não só deram o sangue “pela Igreja”; deram-no também “pelo povo” [...]. Em sua oblação pela causa maior do Reino, nossos mártires são testemunhas de sangue de causas específicas, novas em certa medida e bem nossas. Mártires pelo Reino da Vida, vidas dadas pela vida. Contra todos os deuses da morte que nos espreitam, tão atualizados pelo lucro, pela prepotência, pela marginalização”. (CASALDÁLIGA, Pedro. Cartas marcadas. São Paulo, Paulus, 2005, p.185.)

Nos últimos 25 anos, mais de duas mil lideranças sem-terra foram assassinadas no Brasil, na luta por dignidade e direitos. Para as CEBs, os mártires têm um relevante significado místico, teológico e sócio-político. Eles atualizam a memória do mártir Jesus Cristo, que foi processado e linchado como malfeitor pelo sistema da época.

Missão das CEBs hoje

No atual mundo globalizado e mercantilizado, somos induzidos a esquecer a memória, renunciar a cruz e desacreditar na utopia do Reino. Entretanto, as CEBs entendem que o resgate permanente da história, o cultivo da espiritualidade libertadora e o fortalecimento do sonho de uma sociedade mais justa e igualitária são condições indispensáveis para seguir a caminhada.

Através de sua práxis, os mártires expressam sua consciência crítica sobre o contexto em que atuam e sua decisão radical pela transformação da realidade. Veja-se o testemunho de Dorothy Stang: “não vou fugir e nem abandonar a luta desses agricultores que estão desprotegidos no meio da floresta. Eles têm o sagrado direito a uma vida melhor numa terra onde possam viver e produzir com dignidade sem devastar”.

Celebrar a memória de alguém que foi martirizado é, em primeiro lugar, valorizar seu espírito e sua atitude de entrega da vida. Nisso consiste a grande diferença entre um santo tradicional e um mártir que morreu na luta pela justiça social. Normalmente, pede-se para o santo tradicional uma graça ou um milagre pessoal. O mártir, no entanto, suscita em nós o desafio de continuar lutando na mesma causa pela qual ele derramou seu sangue.

Na Conferência de Aparecida, o tema do martírio esteve presente. O Documento Final incentiva a assumir o projeto de Jesus Cristo, defendendo a vida das pessoas e da natureza até o martírio, se for preciso. Também retoma o método ver-julgar-agir consagrado pelas CEBs. Os bispos declaram: “queremos decididamente reafirmar e dar novo impulso à vida e missão profética e santificadora das CEBs, no seguimento missionário de Jesus. Elas foram uma das grandes manifestações do Espírito na Igreja da América Latina e do Caribe depois do Vaticano II” (DA 194).

Em nosso continente sofrido, as Comunidades Eclesiais de Base deram importante contribuição na formação de discípulos e missionários do Senhor. Muitos de seus membros chegaram, inclusive, a derramar o próprio sangue em gesto de entrega generosa pelo Reino de Deus. “Elas arrancam da experiência das primeiras comunidades, como estão descritas em Atos dos Apóstolos (cf. At 2, 42-47). Enraizadas no coração do mundo, são espaços privilegiados para a vivência comunitária da fé, mananciais de fraternidade e solidariedade, alternativa à sociedade atual, fundada no egoísmo e na competição” (DA 193).

Em meio à diversidade de ofertas religiosas e espiritualistas, as CEBs mantêm vivos a dimensão e o espírito profético da Igreja. Seu projeto e método seguem tendo um papel fundamental na luta pela libertação dos pobres e excluídos. Esse jeito de ser Igreja não perderá sua importância enquanto houver fome, miséria, opressão, exclusão, violência, injustiça, corrupção, agressão à dignidade, depredação do meio ambiente etc. Longe de estarem superadas, elas são mais atuais e necessárias do que nunca!


Dirceu Benincá é sacerdote, doutorando em Ciências Sociais pela PUC/SP e mestre pela mesma universidade. É coordenador dos cursos online no CESEP/SP, membro da equipe nacional de CEBs e co-autor do livro CEBs: nos trilhos da inclusão libertadora. São Paulo, Paulus, 2006. - Publicado na edição Nº05 – Junho 2008 - Revista Missões.